sábado, 18 de fevereiro de 2017

Dossiê 1937: O outro título nacional do Atlético

Introdução

A unificação de títulos, como já expus em outro texto é algo complexo. Ela seria dispensável se os torcedores não deixassem a história do seu time cair no esquecimento, pois ela também permite que uma instituição como a CBF defina o que foi importante ou não, cometendo alguns equívocos.

Não estou me colocando aqui contra a unificação, e entendo que como a memória dos títulos que não tiveram continuidade tendem a se perderem no tempo, fazendo a mídia e o próprio clube darem pouca importância a eles, a unificação é um recurso interessante, no sentido em que ela dá ao torcedor de hoje a dimensão da importância da conquista de outrora, possibilitando a história estar sempre viva e fresca.

Uma das injustiças dessa unificação é o não reconhecimento do título brasileiro de 1937 do Atlético Mineiro. O jornalista Odir Cunha que elaborou o "Dossiê pela Unificação dos Títulos Brasileiros a partir de 1959", aprovado pela CBF em 2010, não incluiu o título do Galo, mas disse ao jornal Hoje em dia [1] que:

"O pessoal ligado ao Atlético não pode esperar que a CBF vá se envolver neste trabalho porque eles não têm essa preocupação. A CBF é uma entidade muito mais política do que histórica. O esforço do clube deve partir de pesquisadores. A proposta é factível pelo que estudei. Havia representantes de quatro estados que eram considerados os mais fortes. Foi um torneio representativo, foi um título nacional importante porque foi inédito naquela época. Ocorre que foi organizado por uma entidade que não existe mais e isso pode dificultar um pouco."

No dia 03 de fevereiro de 2017 esse título fez 80 anos, e pasmem, nenhuma menção nas redes sociais do Atlético ou no site oficial. Na mídia, poucas menções. Infelizmente, esse descaso infuencia a visão do torcedor. O CAM - Centro Atleticano de Memória - revela que possui cerca de 30 matérias que comprovam a conquista, e que existem inclusive registros guardados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro [2], material pouco explorado e divulgado.

A minha ideia então foi pesquisar sobre o campeonato de 37, e tentar encontrar cópias de documentos da época na internet, a fim de elaborar um dossiê sobre o que foi essa conquista, qual foi sua importância e a repercussão da mídia. 


Entidade organizadora, formato e precursores

A Copa dos Campeões de 1937 foi organizada pela FBF - Federação Brasileira de Futebol. Essa entidade surgiu em 1933, após a Associação Paulista de Esportes Atléticos e a Liga Carioca de Football se desfiliarem da Confederação Brasileira de Desportos devido à questão do profissionalismo, uma vez que a CBD só aceitava amadores. As duas entidades conviveram juntas, a CBD convocava os jogadores para a seleção e a FBF cuidava do futebol profissional. A FBF foi extinta em 1937 quando a CBD passou aceitar o profissionalismo [3].

A disputa reuniu os campeões estaduais de 1936. Várias federações foram convidadas a mandarem representantes, algumas em litígio com a FBF não mandaram. Os times que participaram do torneio que visava consagrar um campeão nacional no país foram [4]:

  • Associação Portuguesa de Desportos (Campeão Paulista de 1936);
  • Fluminense Football Club (Campeão Carioca de 1936, representante do DF);
  • Clube Atlético Mineiro (Campeão Mineiro de 1936);
  • Rio Branco Atlético Clube (Campeão Capixaba de 1936);
  • Sport Club Aliança (Campeão Campista de 1936, representante do RJ);
  • Liga Sportiva da Marinha (Convidado).

Os campeões do Campeonato do Distrito Federal, Campeonato Paulista e Campeonato Mineiro, já estavam assegurados na fase final da competição. Os times Sport Club Aliança e Liga de Sports da Marinha jogaram a primeira fase na cidade de Campos dos Goytacazes, sendo vencedor a Liga de Sports da Marinha, que disputou a segunda fase contra o Rio Branco Atlético Clube; este último venceu a partida na prorrogação (2-0) e teve o direito de se juntar aos outros três campeões na fase final da competição.

Fases Preliminares

6 de janeiro de 1937
SC Aliança 0 – 2 Liga de Sports da Marinha – Campos dos Goytacazes (RJ)

11 de janeiro de 1937
Rio Branco-ES 2 – 0 (prorr.) Liga de Sports da Marinha – Estádio Governador Bley, Vitória (ES)

Fase Final (Pontos corridos, com jogo de ida e volta)

10 de janeiro de 1937
Portuguesa 4 – 1 Fluminense – Campo do Cambuci, São Paulo (SP)

13 de janeiro de 1937
Fluminense 6 – 0 Atlético-MG – Estádio das Laranjeiras, Rio de Janeiro (RJ)

13 de janeiro de 1937
Rio Branco-ES 3 – 1 Portuguesa – Estádio Governador Bley, Vitória (ES)

17 de janeiro de 1937
Rio Branco-ES 1 – 1 Atlético-MG – Estádio Governador Bley, Vitória (ES)

20 de janeiro de 1937
Fluminense 6 – 2 Portuguesa – Estádio das Laranjeiras, Rio de Janeiro (RJ)

24 de janeiro de 1937
Rio Branco-ES 4 – 3 Fluminense – Estádio Governador Bley, Vitória (ES)

24 de janeiro de 1937
Atlético-MG 5 – 0 Portuguesa – Estádio de Lourdes, Belo Horizonte (MG)

28 de janeiro de 1937
Fluminense 5 – 2 Rio Branco-ES – Estádio das Laranjeiras, Rio de Janeiro (RJ)

31 de janeiro de 1937
Atlético-MG 4 – 1 Fluminense – Estádio de Lourdes, Belo Horizonte (MG)

31 de janeiro de 1937
Portuguesa 4 – 0 Rio Branco-ES – Campo do Cambuci, São Paulo (SP)

3 de fevereiro de 1937
Atlético-MG 5 – 1 Rio Branco-ES – Estádio de Lourdes, Belo Horizonte (MG)

14 de fevereiro de 1937
Portuguesa 2 – 3 Atlético-MG – Campo do Cambuci, São Paulo (SP)

Classificação da fase final

É importante citarmos que embora esse tenha sido o primeiro campeonato nacional profissional, em 1920 a CBD havia organizado um torneio amador semelhante com o objetivo de montar a Seleção Brasileira para o Campeonato Sul Americano no Chile no mesmo ano. As despesas foram pagas pela entidade e os jogos foram realizados no Estádio das Laranjeiras - DF. Os participantes foram: Paulistano (Campeão Paulista de 1919), Fluminense (Campeão do Distrito Federal de 1919) e o Brasil-RS (Campeão Gaúcho de 1919) e teve como campeão o Paulistano [5][6]. A diferença, além da questão do profissionalismo, é que o título de 1937 foi considerado "Título brasileiro" por alguns jornais da época como veremos a seguir.


Documentos

O Globo, 4 de fevereiro de 1937, Vespertina, Geral, p. 8 [7]:

"A derrota do Rio Branco deu o título máximo ao Athetico [grifo nosso]"

Jornal dos Sports, 4 de fevereiro de 1937:

"Athetico já é o Campeão dos Campeões! O Club mineiro venceu o Rio Branco por cinco a um.
Como transcorreu a peleja decisiva do Campeonato da Federação Brasileira [grifo nosso]"

Estado de Minas, 4 de fevereiro de 1937:

"Campeão Brasileiro"

O Diário da Noite destacou a importância da competição, como "O título máximo da FBF" [8]. 

Assim como a Taça Brasil e o Robertão, o Torneio dos Campeões permaneceu vivo na memória dos torcedores durante décadas. A importância dada ao título na época pode ser comprovada a partir dos grandes destaques nas manchetes dos jornais. Anos depois a conquista continuou bastante valorizada, inclusive internacionalmente.

Em 1950, por ser considerada uma das melhores equipes do Brasil ao lado dos times de Rio e São Paulo, o Atlético foi convidado a representar o futebol brasileiro em uma excursão pela Europa [9]. Em dezembro o Atlético enfrentou o Stade Français no Parc des Princes e o jornal Le Monde, estampou em seu caderno de esportes a seguinte chamada para o jogo: "Le Stade français contre le champion du Brésil", fazendo referência ao título de 1937.

Le Monde, 6 de dezembro de 1950 [10]

Em 1968, Vicente Motta ao compor o hino oficial do Atlético, reservou a quarta estrofe da letra para exaltar o título de 37:

"Nós somos campeões dos Campeões,
Somos o orgulho do esporte nacional."

Em 1971 após o título brasileiro conquistado pelo Atlético, o jornal O Globo [11] relembrou o título de 37:

O Globo, 20 de dezembro de 1971, matutino, Esportes, p. 4
"Atlético obteve 1º título de campeão nacional em 37 [grifo nosso]"

O icônico torcedor do Galo, José Gomes Ribeiro ( 1977), o Sempre, um dos símbolos da torcida atleticana devido seu amor incondicional pelo clube fez a seguinte afirmação ao "Jornal do Brasil" após o Atlético conquistar o Brasileirão de 1971: 

– É bicampeão! Um timaço, um timaço (o de 1937) [12].


Considerações finais

Foi levantado um material consistente, a partir de documentos confiáveis da época que apontam para a conclusão de que o torneio foi de fato importante. Manchetes e reportagens da época exaltaram o Atlético como campeão do "Campeonato da Federação Brasileira" no Jornal dos Sports, campeão do "Título máximo" no jornal O Globo e até mesmo "Campeão Brasileiro" pelo jornal Estado de Minas. Importante notar que não foram apenas jornais locais que noticiaram essa conquista.

Foi um torneio único e sem continuidade. O Brasil ficou de 1938 a 1958 sem um time campeão brasileiro, quando em 1959 a CBD institui a Taça Brasil a fim de selecionar o melhor time para representar o país na Taça Libertadores da América. Talvez por esse motivo em 1950 o jornal Le Monde tenha anunciado o Atlético como "Campeão Brasileiro", pois naquele tempo era o único time a ganhar um torneio máximo no país.

Em 1971 o jornal O Globo relembra a conquista de 37: "Atlético obteve 1º título de campeão nacional em 37" [grifo nosso]. Importante pontuar que o Campeonato Brasileiro se chamou Campeonato Nacional de Clubes entre 1971 e 1974. A escolha do termo "campeão nacional" para se referir ao campeonato de 37 não foi sem motivos: era uma clara equiparação ao título que o Atlético tinha acabado de conquistar.

Todavia, algumas questões ainda se colocam: 1) A organizadora do torneio ter sido a FBF e não a CBD: o contexto histórico da época era de muitas cisões e conflitos de interesses quanto a profissionalização ou não do futebol, mas fato é que a FBF geria o Futebol profissional do país naquele tempo. 2) Federações que não enviaram representantes [13]: mais uma vez esbarramos na questão da profissionalização, por exemplo, o futebol do Rio Grande do Sul estava em um contexto de cisão [14] e não mandou representantes. Fato é que importantes forças do futebol profissional do Brasil disputaram o torneio, inclusive representantes de Rio e São Paulo, dando a ele um status de Nacional.

Estando claro que o título de 37 foi de primeira importância, retornemos à questão da unificação. Como dito anteriormente, ela seria dispensável se os torcedores, o clube e a mídia não deixassem a história dos times caírem no esquecimento. Todavia, se a unificação é um recurso instituído pela CBF para dar hoje a dimensão de importância da conquista de outrora, ocorre uma grande injustiça quando o título de 1937 do Clube Atlético Mineiro não figura nessa lista.

Time campeão: Floriano Peixoto (técnico), Kafunga, Florindo, Zezé Procópio, Lola, Bala, Alcindo, Quim, Clóvis. Paulista, Alfredo, Guará, Nicola, Rezende e Elair


Edit 25/12/2021: Devido o retorno dessa discussão após o presidente Sérgio Coelho afirmar que apresentou a CBF pedido de reconhecimento deste título como Campeonato Brasileiro, fiz uma thread no Twitter explicando o porquê acho esse pedido muito válido e rebatendo alguns questionamentos. Quanto ao baixo número de partidas, estados participantes e entidade organizadora não ter sido a CBD, os próprios torneios unificados pela CBF abrem precedente para unificação do título de 1937 (ver thread).

Todavia, uma questão pertinente foi levantada nos debates, que é o fato de Vasco e Palmeiras terem sido campeões estaduais em 1936 e não terem participado do Torneio dos Campeões de 1937. Naquele tempo por diversas questões - em especial a questão do profissionalismo - haviam mais de uma liga de futebol em alguns estados e os torneios vencidos por Vasco e Palmeiras em 1936, embora reconhecidos pelas atuais federações como campeonatos estaduais, na época, foram organizados por Ligas que não estavam filiadas a FBF, entidade que geriu o futebol profissional do país entre 1933 e 1937.

Por isto, a partir da ótica da profissionalização do futebol, mantenho a defesa de que o Atlético Mineiro deve ser considerado o primeiro campeão nacional de futebol profissional.


Referências

[1] Copa dos Campeões: imortalizada no hino do clube, conquista do Atlético completa 80 anos. Disponível em: http://hoje.vc/wm7v. Acesso em 17/02/2017.
[2] Dossiê da unificação dá brecha aos títulos de 1920 e 1937. Disponível em: http://www.lancenet.com.br/minuto/Dossie-unificacao-brecha-titulos_0_392960821.html. Acesso em 04/08/2013.
[3] Federação Brasileira de Football. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Federação_Brasileira_de_Football. Acesso em 17/02/2017.
[4] Copa dos Campeões Estaduais 1936. Disponível em: http://www.rsssfbrasil.com/tablesae/ccest1936.htm. Acesso em 17/02/2017.
[5] Copa dos Campeões Estaduais. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Copa_dos_Campeões_Estaduais. Acesso em 17/02/2017.
[6] Copa dos Campeões Estaduais 1920. Disponível em: http://www.rsssfbrasil.com/tablesae/ccest1920.htm. Acesso em 17/02/2017.
[8] Dossiê da unificação dá brecha aos títulos de 1920 e 1937. Disponível em: http://www.lancenet.com.br/minuto/Dossie-unificacao-brecha-titulos_0_392960821.html. Acesso em 04/08/2013.
[9] O Imortal do Gelo [Documentário].
[10] Le Stade français contre le champion du Brésil. Disponível em: http://www.lemonde.fr/archives/article/1950/12/06/le-stade-francais-contre-le-champion-du-bresil_2055314_1819218.html. Acesso em 17/02/2017.
[12] Dossiê da unificação dá brecha aos títulos de 1920 e 1937. Disponível em: http://www.lancenet.com.br/minuto/Dossie-unificacao-brecha-titulos_0_392960821.html. Acesso em 04/08/2013.
[13] Atlético 1937: 1º e único campeão dos campeões em todo o Brasil. Disponível em: http://canelada.com.br/atletico-mg/o-campeonato-mineiro-e-o-clube-atletico-mineiro/. Acesso em 17/02/2017.
[14] Campeonato por regiões. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Campeonato_Gaúcho_de_Futebol#Campeonato_por_regi.C3.B5es. Acesso em 17/02/2017.